terça-feira, 27 de maio de 2008

A Bota dos Altos




Sapatos classudos entrebatem no chão jocoso do logradouro rentável
Roçam-se eles suavemente na orla das cerâmicas enceradas -
tácitas e impecáveis
Uma em cada peça dessa – feita para a lona, de pisar –
mais valiosa e preferível que as sandálias do rueiro
Marrentos ambos
Rueiro esse de pé manco, marcado e mal nascido
O calçado em couro largo, esgarçado e mal doado
Em cima, sobre o calcanhar a canela sôfrega
em baixo, sob a sola a fatia almôndega
A botina alta que beija o piso logo se esfrega
no conforto púrpura almofadado
E o mendigo ralo que no batente se encosta
logo adoece com o mijo de um rato
Palmilhas e modelitos invejáveis de status
Reconfortam os pés polidos de donos abastados
Moldam as colunas mercantis e sórdidas
do calçamento privado
Alongam as fileiras infindáveis da moda egoísta
e do poder concentrado
Uma reles e pútrida combinação mesquinha
de vestuário com miséria empregatícia
A divisão do trabalho numa aquisição baixa
poucos em cima do salto alto e muitos sobre uma caixa
O couro mais fino e trabalhado, enfeitando o pé da luxúria,
advindo da indústria
O tal calo na mão dos proletários, subalternos de seus salários,
adquirindo o calçado inqualificado, o mais barato.


Daniel Monteiro

terça-feira, 13 de maio de 2008

O ESQUERDO

O puro e simples é o errado
É o que a gente não procura
Mas é o fato consumado


O sinistro ronda as categorias
Inverte os diálogos avulsos
E prima bonito pela boêmia


As conversas e gestos mentem patifarias
Sórdidas idéias de quem vive criativamente
Num universo de poucos e armadilhas


Quem é cachorro é o esperto da rua
Vive como insano e leva na malícia
Pronto seu pé esquerdo sob a sombra da lua


Assim o mundo desses loucos é bem simples
Todos se cruzam e entendem-se entre si
Ó bom destro
Na vontade branda dos humildes.


Daniel Monteiro



sexta-feira, 2 de maio de 2008

Violência gratuita, delivery!


Quando entrei no orkut pela primeira vez, minha intenção era a mais altruísta de todas, fazer amigos e quem sabe encontrar aí uma oportunidade de trabalho, mas o desânimo logo me pegou de solavanco e eu percebi quanta displicência e mesquinharia ainda existe, agora com mais força, entre esses jovens mal acostumados: quando escolhia algumas comunidades, nas quais na verdade deveria existir uma interação entre as pessoas, percebia de cara que cada amigo meu tinha pelo menos duas comunidades que odiavam alguma coisa – “Eu odeio alguém!” ou “Eu odeio alguma coisa!” – só para não ficarem de fora da modinha do ódio. Como se seus próprios inconscientes sugerissem essa aversão com naturalidade. Dói-me o peito ter que odiar alguma coisa.
Escancarou-se diante dos meus olhos a necessidade do homem pela violência, e no entanto, essas formas de brutalidade comumente vistas na mídia não provem originalmente de uma necessidade física, mas da imposição de um ideal, como os carecas neo-nazistas esterilizadores da minoria, ou de um comportamento, como as torcidas organizadas, ou o mais intrínseco e legítimo: o instinto, devaneio nervoso e gratuito.
Assim como os mais ricos e os mais pobres precisam se alimentar, em ambos, como humanos que são, é natural que necessitem se violentar. E ambas as classes ganham rios de dinheiro com isso. Os pobres pelo poder paralelo do tráfico, do crime organizado, operando assaltos e roubos, repulsas da realidade e à margem da sociedade, recaindo senão sobre eles o “mérito” pela perpetuação da violência. Já os ricos, por sua vez, como hipócritas e demagogos que são, se utilizam dessa mesma ira real para venderem o fascínio do cinema e da televisão, com a exarcebação e endeusamento da violência, hipnotizando a massa com seu próprio medo e banalizando a violência no conceito dos homens. Enfim, independe de cultura, credo ou etnia, basta ser humano.
Ah, mais aí alguém vai dizer, “não, basta ser animal para ser violento”. De fato. O problema é que o ser humano arrancou a violência de sua natureza original, instintiva, e deu a ela um outro caráter, de entretenimento, de necessidade essencial. Para nossa raça o instinto foi extrapolado, e nós não percebemos nem mais os nossos sentidos físicos, sobrando então uma terrível alta-dosagem de emoções confundidas, uma vez que para se produzir ódio ou amor, o corpo utilizará a mesma enzima.
No jogo do queridíssimo Corinthians, que no brasileiro de 2003 perdeu de 5 a 1 para o Santos, observei comovido os torcedores destruírem o ponto de ônibus e comerem no Habib’s saindo sem pagar – por um instante me senti tentado a fazer o mesmo –, para provarem que, mesmo perdendo o jogo, ainda possuem a Força e não podem ser subestimados. Matheus, prezado ex-amigo meu, conseguiu ser ainda pior: afirmou que vai ao jogo do São Paulo sempre, mas nem chega a prestar atenção no campo, seu objetivo é xingar os torcedores do outro time e, se possível, sai antes do jogo acabar para sangrar a mão de tanto dar porrada nos losers!
Uma melancolia corroída me atinge quando tenho lembranças dos humanos em sua mediocridade. No começo do ano, lá ia eu embora para casa na linha metropolitana de ônibus. Sem opções de assento, sentei-me na reservada para os idosos, não presentes no momento. Passou um tempinho e adormeci, vencido pela exaustão. De sopetão, me veio à nuca um tapa seco, rancoroso, cheio de desamor, vindo de um velhinho rabugento (minha violência normalmente é verbal) que, para alcançar sua meta (sentar-se no banco), utilizou-se da violência desnecessária e da covardia. Mesmo se estivesse acordado e cede-se o lugar a ele, o homem ainda me xingaria.
Eis o que queria dizer: é necessário descarregar a violência para não acumulá-la, e eu resolvo isso da forma menos violenta, dormindo no mínimo seis horas por dia, quando não estou sonhando com sangue. Quando liguei a televisão e o Maluf era prefeito, percebi que até os governantes exigiam um pouco de violência: “Estupra, mas não mata”. E por quê? Porque é muito eleitoreiro e atraente ser violento, e às vezes o sou contra minha própria vontade.
Mas pode acreditar, não somos nós que desejamos a violência, é a violência que nos deseja. Infelizmente temos que machucar as mãos para não ficar com a cara machucada. Mesmo pessoas de bem, que fazem de tudo para evitar truculências e selvageria, recebem delivery a sua violência de cada dia! E carrego no rosto a marca da perseguição, quando num ônibus fui alvo da ira humana e de uma pedra fulminante, que abriram ambas um rasgo logo abaixo dos meus olhos.
Então, quando já não tinha mais para onde correr, entrei no orkut, onde todos poderiam saber o que sinto, e inventei uma comunidade para desabafar de vez: “Eu odeio odiar!”. Que é bem lógico, não permiti que perpetuasse.